quinta-feira, 31 de maio de 2007

Ciúme II

Greta não gosta de visitas.
Arrepia-se toda, arreganha os dentes e lança para fora das patas felpudas as unhas afiadas.
A casa é dela, só dela.
Ele é dela.
Tentou trancá-la no quarto algumas vezes, mas foi pior. Foi uma crise, um drama _até hoje ela guarda mágoa.
Greta só tolera a faxineira _ainda assim, com limites.
Não aceita sequer outros perfumes. Fareja o ar quando ele chega, desconfiada.
Às vezes, ao acordar, ele se depara com os felinos olhos verdes em sua direção.
Às vezes, ele tem medo de dormir.

Ciúme I

No braço esquerdo ele tem tatuado o nome dela. Que também é o meu. No meio da noite, ele me abraça e, sonhando, sussura: Maria. Olhos Arregalados no escuro, pergunto:
Maria de quê?


sexta-feira, 25 de maio de 2007

Boxe

Mais que amor. Mais que dinheiro. Mais que felicidade.
Mais que tudo e qualquer coisa você quer um saco de pancadas. Não só você. Todo mundo. Alguém que leve todas as porradas e entenda. Que você tem problemas, que você anda exausto, que são tantas e tantas as frustrações, borrando aqueles sonhos cada vez mais distantes.
E sempre tem alguém que entende. Que, só um pouquinho, aceita.
Geralmente, quem ama.
Depois chora no telefone, reclama: "Você não pode me tratar assim, eu não sou o seu saco de pancadas".
Mas não foi esse o acordo implícito desde o início?
Talvez eu abra uma loja. Sacos de pancadas _para dar e vender. Na vitrine, homens e mulheres lindos, sorrindo. De braços abertos. Sem prazo de validade.



terça-feira, 22 de maio de 2007

Doze anos esta noite

No meio do jantar, ela confessa: estou sem calcinha.
Mesmo à meia-luz, ele percebe o rubor no rosto da esposa. Segura sua mão afetuosamente e sussura que mal pode esperar para chegar em casa _mas pede sobremesa, café e enrola o quanto pode para terminar de fumar o charuto...

segunda-feira, 21 de maio de 2007

a esfinge




Ela pede chope. Ele, um suco.
Ri, debochada: Suco?
Estou tentando parar de beber, ele diz.
Ah... Ela arruma o decote. Parei de fumar há alguns meses. Oito meses e meio, especificamente. É dose, você não acha?
É dose, concorda o rapaz, rosto magro e olhos escuros. Do cavanhaque ela não gosta. O cabelo é bonito. Mas não sabe se vestir muito bem.

Agora não posso sentir nem cheiro de cigarro. Tenho horror. Mas às vezes sonho que estou fumando. Ontem mesmo, passei a noite inteira sonhando com baforadas de cigarro. Será que todo mundo passa por isso?
Ele sorri.
Quer que eu cancele o chope? Posso pedir outra coisa. Você não fica incomodado?
Ele responde que não. O chope chega, a espuma transborda da caneca gelada. Gentil, ela puxa o chope pra si e empurra o suco em direção a ele: a nós!
Ele desvia o olhar.
A música é ruim mas isso não interessa. Nem o aspecto encardido do piso. Ela percorre os olhos pelo bar, procurando conhecidos. Todos parecem fumar.

Por que você parou de beber?
Longa história...
Bom, temos a noite toda, não é?
Ele a encara. Não queria beber até morrer, como meu pai, nem beber até matar, como meu irmão.
Mas ela já é vivida demais para se abalar respostas do tipo. Toma um gole de chope, lambe a espuma dos lábios e sorri para o moço magro.
Só isso?
Só.
Não é uma história tão longa assim, sabia? Ela ajeita o decote. O que aconteceu com o seu irmão?
Está preso.
Mesmo? Onde?
Carandiru...
Jura? Nossa, tenho um tio que trabalha lá. É agente. Agente Sampaio. Será que ele conhece?
Ele observa o cubo de gelo derreter dentro do copo.
Se quiser, posso falar com meu tio. Quem sabe ele não dá uma ajuda para o seu irmão? Uns maços de cigarro, talvez? Dizem que cigarro, lá, vale ouro. Qual o nome do seu irmão?
Ele sussurra um nome inaudível. Mas dispensa a ajuda. Ela suspira. Você é que sabe.

O pequeno iceberg naufraga no mar alaranjado. Ele enfim chupa o suco com o canudo. Está azedo. Não há açucareiro na mesa. Apenas um paliteiro e um cinzeiro de vidro.

Ela termina o chope de um só gole e apóia o queixo na mão. O cabelo dele é bonito. E a roupa nem é tão feia assim. Mas é outra coisa, uma coisa muito sutil, que ela não consegue ver direito nele, por mais que tente. Resolve arriscar.

E se você não conseguir parar de beber?
Dentro dele, a vontade cada vez maior de sair dali. Mas ela segura sua mão.
Se você aceitar esse destino e encher a cara mesmo. Sem dó... Que caminho você iria seguir? O do seu pai ou o do seu irmão?
Ele sente um arrepio na nuca, como se o pai lhe soprasse um segredo. À sua frente, o irmão lhe lança os olhos avermelhados. Era matar ou morrer.
Eu escolheria a solução mais covarde.

Ela solta a mão fria do rapaz. Na mesa ao lado, amigos brindam o fim de mais uma semana.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

sonata


essa delícia de tarde, o tédio cutucando na medida certa _só o suficiente para me lembrar que a vida chama lá fora (que bom, estoy viva) mas nada que me faça levantar e abrir a porta.
deve ser o calor. pode ser o amor. talvez seja preguiça.
pura preguiça, pecado capital, depois eu me explico pra Deus: onipotente-onipresente-onisciente, estou apenas descansando no sétimo dia _mereço.
não criei o mundo, nem um filho, nem um livro. mas ando a sentir demais e... isso cansa.
a rede balança, o gato se estica, as moscas voejam sobre bananas e caquis estourando de maduros _natureza-morta, autor desconhecido. sem título.
as pálpebras pesam, o coração se aquieta, a respiração arrefece. sinto-me morrer um pouco assim tão viva, acesa pra dentro, a pele sensível _e os ouvidos: as moscas voejam as frutas: zumzumzumzum.
um carro se afasta, crianças brincam entre gritinhos, um cavalo canta _ou assim parece.
a vida chama lá fora.
minhas malas ao lado da porta.
o barco me espera.
não tenho pressa.

domingo, 6 de maio de 2007

1,2,3 testando

- Você tem que entender isso como um teste.
- De quê?
- De coragem.
- Mas eu estou com medo.
- O teste é para isso, para vencer o medo...
- Eu quero a minha mãe...
- A sua mãe vai ficar orgulhosa
- Não vai, não. Vai ficar brava.
- Vai ficar orgulhosa, estou dizendo. Você acha que ela quer um filho covarde?
- Mas é perigoso.
- É nada.
- É muito alto.
- Bom, você que sabe. Eu não vou perder minha tarde aqui com você enrolando.
- Eu não estou enrolando.
- Tá, talvez você apenas não esteja pronto. Eu achei que você estava pronto mas, pelo jeito, me enganei.
- É que é muito alto.
- Tudo bem, não é culpa sua. Tem gente que é assim mesmo, meio covarde...
- Eu não sou covarde!
- Vai começar a chorar agora? Por que isso? Ninguém aqui está te obrigando a nada.
- Eu sei!
- É só ir embora, se quiser.
- Eu vou tentar.
- Duvido.
- Vou!
- Decidiu?
- Decidi.
- É alto mesmo. É perigoso.
- Eu sei.
- Ninguém está te obrigando, você que quer ir.
- E se...
- A sua mãe vai ficar orgulhosa.
- Acho que vai...
- Preparado?
- A-ham.
- Então vem aqui. Não olha para baixo.
- É alto!
- Fecha os olhos. Dá mais um passo. Mais um. Pronto? Agora dobra os joelhos. Pensa que tem uma piscina lá embaixo. Respira fundo... Pula!

fome

Entre os corredores tranqüilos do supermercado, ela foi atropelada pelo desejo intenso de comer carne.
De vegetariana-praticante-de-ioga-professora-de-música&budista, viu-se num instante reduzida a um simples animal carnívoro. E a fome que roncou em suas entranhas sequer pertencia a ela _era um bicho que despertava após uma hibernação de séculos.
Devorou com os olhos os pedaços crus de maminha, lagarto e picanha. Até o ventinho frio que vinha das prateleiras atiçava o apetite. Só podia lamentar naquela abundância toda que não fosse preciso caçar.
Sempre dizia que se alguém visitasse um abatedouro, viraria vegetariano imediatamente. Os olhos tristonhos do gado, o mugido longo pedindo ajuda, o baque após a paulada. E agora ela mesma queria mirar, matar e comer.
Não sentia culpa, nem vergonha, nem se fez de surpresa. Temperou e tostou o bife na manteiga como se fosse essa a sua rotina a cada noite. Mastigou com vontade, lambeu o sangue dos dedos e palitou os dentes.

Sentia, sim, um gosto de morte. Amanhã, talvez, surgissem questões morais a serem resolvidas.
Por hora, havia a digestão.

Promessa

Quando dona Lina adoeceu _câncer, disseram_, a filha, desesperada, fez uma promessa: "Se a mamãe se curar, eu entrego minha vida a Deus. Procuro um convento e viro freira". Há quem jure ter visto um traço de alívio no rosto da moça durante o enterro.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Contra-indicações


A cada vez que engole o comprimido, uma lágrima se desequilibra sob a pálpebra.
A boca amarga.
Os dedos recobertos por uma fina camada de pó dourado.