terça-feira, 25 de março de 2008

"Sapore di sale, sapore di mare..."



10 milhões 886 mil e 518 habitantes na cidade.
Nenhuma pessoa nas ruas.
Naquele dia, todos voltaram mais cedo para casa, com medo de novos ataques. Todos trancaram a porta e fecharam as cortinas. Todos os estabelecimentos estavam fechados _ou quase todos.
Numa ruela escura e tortuosa na Bela Vista, a Pizzaria Bacio permanecia iluminada. Seu Roperto podia ter todos os defeitos, mas, verdade seja dita, o velho tinha um belo senso de oportunidade: ninguém sai de casa, mas todo mundo precisa comer _a solução? Delivery.
"É uma chance única!", gritava ao telefone.
Do outro lado da linha, um moleque de 19 anos ainda parecia incerto quanto às supostas vantagens da empreitada. "Ah, Seu Roperto. O senhor fica lá, dentro da pizzaria, no bem-bom. Mas quem vai sair de bicicleta correndo risco de tomar tiro de bandido e de polícia sou eu."
O velho prometeu um aumento. E como a pobreza geralmente não dá muita margem de escolha, o menino aceitou. Antes de sair de casa, ainda quis desistir. É que seus olhos resvalaram no espelho do banheiro e sem querer ele pensou: seria esta a última vez em que via o próprio rosto?
Preferiu pensar isso sim na moto que agora poderia comprar. Honda. Usada mas quase nova. Motoboy sim era uma profissão de futuro.
Subiu na bicicleta e foi pro trabalho.
Às 20h, o primeiro cliente ligou: uma napolitana, sem cebola, mais uma Coca de dois litros. O velho Roperto, que não era dado a sentimentalismos, apenas apertou a mão do moleque. "Vai com Deus."
Ele saiu da pizzaria com o coração aos pulos. E porque precisava acreditar em algo, criou para si mesmo a regra de que as ruas menores eram mais seguras _PMs e criminosos certamente optariam pelas grandes avenidas para cruzar a cidade. Por outro lado, pensava, as vias maiores também ofereciam mais opções de fuga caso fosse ameaçado... Mas pensando bem, nas ruas escuras ele se tornava um alvo mais difícil. E assim ele ia montando seu guia de sobrevivência, pedalando quase colado aos muros, para se disfarçar melhor.
Sentia-se um veterano de guerra ao chegar no endereço dado: um prédio de classe média na Peixoto Gomide. Pizza entregue, missão cumprida. "Corajoso pra caralho", disse o cliente, entregando-lhe dez reais de gorjeta. "Parece que eles estão detonando tudo por aí."
Benzeu-se três vezes para encarar o caminho de volta. No silêncio da noite, conseguia escutar a própria respiração. Vez ou outra, uma sirene ao longe lhe arrepiava os cabelos. As mãos escorregavam no guidão devido ao suor. Ele descia a Peixoto devagar, com os olhos arregalados.
Subitamente, parou.
Assustado por perceber que a cidade, assim silenciosa e quieta, parecia incrivelmente bela. Admirou os prédios, o céu, a rua. A Barata Ribeiro era uma reta descendente até o viaduto. Iluminada, vertiginosa, completamente vazia.
E um desejo antigo fez cócegas no moleque.
Posicionou-se no alto da ladeira, bem no meio do asfalto.
Respirou fundo, tirou os pés do chão e deixou o corpo cair pra frente. Bastaram três pedaladas para que a bicicleta ganhasse velocidade sozinha, zunindo ladeira abaixo. Fechou os olhos para sentir melhor o vento no rosto, o frio na barriga, o cheiro da noite.
Os médicos diriam depois que ele havia perdido o juízo.
Ele sorriu: havia perdido o medo _da morte, da pobreza, do futuro, de Deus.
E enquanto a cidade sofria enclausurada, Wellington guardava na boca o gosto do sangue e da liberdade.

terça-feira, 11 de março de 2008

Então ele percebeu...

Acontece que certo dia, uma sexta-feira, ela chegou ao trabalho com a mesma roupa da véspera.
Logo ela, que em sua vaidade-classe-média, jamais usara a mesma blusa duas vezes numa semana. E logo ela, que a custo de muito gel sempre mantinha cada fio de cabelo preso num coque rente à nuca, apareceu naquela manhã com a juba solta, ouriçada e rebelde.
Para piorar o estrago: batom. Daqueles vermelhos. Cor de sangue. Batom de vagabunda!, ele pensou, agarrado à mesa. Mesmo de longe, conseguia farejar o cheiro que ela exalava... Um cheiro almiscarado que ocupava toda a repartição. Rangeu os dentes... Cheiro de homem!
Levantou-se para fumar um cigarro, esfriar a cabeça. Pediu um café e virou o copo como se fosse pinga. A bebida desceu fervente, rasgando tudo. Pediu mais um.
A vontade mesmo era de ir lá tirar satisfações. Mas de quê? Três ou quatro olhares fortuitos, um esbarrão no elevador, se tanto. Era esse o relacionamento que tiveram. O resto foi fantasia _ele imaginou o diabo a quatro com aquela mulher, verdade seja dita. Coisas que agora até se envergonhava de lembrar.
Mas não era o único culpado. Não, senhor. Ela sabia muito bem. Mulher sempre sabe. E ela nunca fez cara feia. Fez? Muito pelo contrário. Desviava o olhar e fazia cara de sonsa. E era disso mesmo que ele gostava. Isso que atiçava a sua curiosidade. O cabelo arrumado. A roupa bem passada. O salto baixo. Tudo certinho demais, como a calma que reina antes das grandes catástrofes.
Terremoto, vulcão, ciclone, tudo junto. Ela explodindo feito bomba. Relatórios voando pra todo lado. Ele rasgado, arranhado, devorado, caído no chão.
Pode parecer bobagem. E é. Mas era isso que ele imaginava.
E foi o que aconteceu.
Mas de um jeito que ele não previu.
Virou o terceiro copo e decidiu voltar à repartição. Foi entrar e sentir logo o cheiro dela impregnado no ar. Pura náusea. Vomitou ali mesmo meio litro de café.
Os colegas acudiram. Em quinze anos de firma, nunca viram o Moreira assim pálido, frio. Alguém trouxe um copo d'água, o chefe disse que era melhor ele ir para casa.
Ela apenas olhou de longe. Ele arrumou a mesa, pegou a pasta e se arrastou pelo corredor. Diante do elevador, virou-se devagar e a olhou uma última vez. Com desprezo, ódio e dor.
Ela esperou ele partir.
E sorriu discretamente.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Então eu percebi

Fiquei confusa, claro. Mas resolvi retribuir os olhares. Afinal, o moço era até bem-apessoado. E eu já estava cansada de tanta solidão.
Respirei fundo e... sorri. Quando ele se virava em minha direção, eu me virava também. Quando nos encontrávamos no corredor, eu tentava ajustar meu passo ao seu ritmo. Se compartilhávamos por instantes o vazio do elevador, eu admirava seu rosto com ternura. E sorria.
Ele jamais retribuiu um sorriso.
Na verdade, parecia irritado com aquela recente reciprocidade. Nossos olhares se cruzavam _ele desviava o rosto. Eu me aproximava _ele mudava de rumo. Começou a me dedicar muito mais distância e frieza do que a qualquer outra funcionária da repartição.
Eu quis me esconder num buraco, claro. A conclusão óbvia: confundi tudo _de novo. A alucinação da carência. Vexame.
Mas quando enfim tive coragem de erguer os olhos acima da pilha de memorandos. Nos reencontramos.
Foi um olhar breve, quase nada. Mas suficiente para eu entender seu pedido.
Não queria chope, cinema, motel. Nada disso.
Só uma coisa: a posse da fantasia.
Aquele affair imaginário era dele.
Só dele.
A mim, cabia a gentileza de virar o rosto e voltar à via-sacra dos relatórios, fingindo-me alheia às falsas intenções de meu admirador pretensamente secreto. Ocupar o espaço do ser amado. Mas não me atrever a amá-lo.
Ser objeto de desejo. Não desejar.
Respirei fundo e... obedeci.
Pode parecer pouco. Pode ser doentio. Ou machista.
E é.
Mas às vezes sinto seus pensamentos roçarem a minha nuca.
E posso garantir que não há prazer igual.