segunda-feira, 26 de março de 2007

Miúdos

Segurava o garfo na frente da boca e num relâmpago lembrava que muito tempo atrás um menino mais velho a havia obrigado a comer uma barata. Era isso e, em seguida, a falta de apetite e, um pouco mais tarde, a indigestão que lhe acompanhava pelo resto do dia.
Na manhã seguinte esquecia e comia, mas nunca muito. A barata lá, dormindo no fundo do fundo do estômago. Se passava muito tempo quietinha, a moça até ganhava uma ou duas curvas e se sentia bonita, andando de short pelo calçadão.
Mas se os olhos tropeçavam em qualquer bicho morto, a outra acordava e corria por dentro, roçando as perninhas em cada víscera. Ela trincava os dentes de horror e definhava, sem remédio, terapia ou reza à qual apelar.
Sentia fome, sim. E nunca quis que as costelas aparecessem sob a pele. Era isso que não entendiam. O problema era o menino, e a barata, e aquela sensação entalada na garganta de que ainda estava presa naquela tarde, para sempre com seis anos e lutando para engolir o choro.
Também foi com muita luta que conseguiu engolir, após anos de fome, aquela coleção de comprimidos coloridos. Eles também se agarraram à lingua e arranharam a garganta, mas ela venceu um a um.
Ainda tentaram salvá-la. A dúvida é: de quê? Seja como for, não conseguiram. Após a lavagem estomacal, a única coisa que saiu lá de dentro foi uma barata, que logo fugiu por baixo da porta. Enquanto os médicos olhavam aquilo assustados, a enfermeira tentava prender o corpo da moça à maca. De tão leve, ele parecia querer flutuar.

sexta-feira, 23 de março de 2007

On the road...


Olha, Ângelo... _Ele sentado no muro da rua, os pés descalços balançando a meio palmo do chão, o rosto afogueado. Eu ia dizer para ele ir embora, mas descobri no meio da frase que não tinha esse direito. Lá dentro, a família toda tentando controlar o tio, que havia bebido demais. De novo.
Sentei ao seu lado e ficamos olhando para a porta fechada, para a janela fechada da casa. O vento da rua batia em nossa nuca, prometendo dias de liberdade. Às vezes eu queria fugir, eu disse, querendo dizer por ele, na verdade.
Eu não, respondeu ele.
Então eu pensei que fugir seria bom sim, por mim mesma. Mas não sem ele. Num carro conversível, a tarde caindo, ouvindo o rádio. Para onde poderíamos ir?
Ângelo, o que você acha que vai acontecer? _como se os dois anos que o tornavam mais velho fossem suficientes para que ele tivesse todas as respostas que eu não tinha.
"E eu lá sei de alguma coisa?"
"Mas você também nunca sabe nada!" _eu sei que não devia, mas estava com raiva dele também. "Você podia fazer alguma coisa, mas não faz nada. Nunca sabe nada. Fica aí parado, feito mosca morta. Não quer fugir, não reage. Não se defende. Você é um covarde. Por isso é que o seu pai veve batendo em você!"
Ele riu. "Veve?" E me olhou com um certo desprezo simpático. "Analfabeta..."
Não me contive e bati nele também. No mesmo lugar. O rosto do menino afogueado, mas agora também os olhos, úmidos, ardiam. Ainda assim, não moveu um músculo. Não disse nada.
Fui eu que fugi, humilhada e sem rumo, para longe dali.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Quase


O telefone toca. Grita, grita, até ficar rouco. Mas a gente nem se mexe. Quando o silêncio se junta à escuridão da sala, eu me espreguiço e ele se espreguiça e nossos pés se tocam sobre a mesinha de centro. Seus dedos estão frios.
Penso na coberta jogada sobre a cama. E numa xícara de chá quente. Mas deixo por isso mesmo.
O telefone toca novamente. Ele afasta o pé. Será que vai se levantar?, eu penso. E aperto os olhos e os lábios para impedir que ele se levante _é o tal do poder da mente. Li sobre isso em algum lugar. Não sei se funciona, mas ele continua parado, apesar do som estridente. Ponto pra mim.
Ficamos em silêncio de novo. Quer dizer, não um silêncio total, porque tem os grilos lá fora, e as estrelas _elas também fazem barulho, daquele tipo bem baixinho, de coisas tilintando quando o vento bate. Para mim é assim, pelo menos. Não sei como é para ele. Talvez ele também ouça mas é melhor não perguntar porque se ele for surdo nesse sentido, aí é como se algo se quebrasse entre nós, entende?
Harmonia é uma coisa complicada. A gente acha que tem aquela conexão, aí tudo vira de ponta-cabeça e já era. Você olha de repente para aquele fulano e pensa: quem é essa pessoa? Eu sei porque isso já aconteceu comigo. Acho que já aconteceu com todo mundo. E pra mim já deu. Por isso deixa o telefone para lá, esquece o cobertor, esquece o chá, esquece esse papo doido sobre as estrelas. Eu vou ficar bem quietinha.
Mas aí o telefone toca novamente. Eu sinto que ele já está nervoso. Eu também estou, só que fiz uma coisa inspirada em ioga durante um tempo e aprendi a controlar algumas coisas com a respiração. É assim: inspire profundamente até inchar a barriga... triiiimmmmm... expire profundamente... triiiiimmm... inspire profundamente...
Quando percebo, o telefone já parou de agredir a gente e dá é para ouvir a minha respiração. Mesmo no escuro, sinto que ele está olhando na minha direção. Talvez esteja curioso porque eu sou assim, cheia de técnicas. Também tenho algumas para acabar com a dor de cabeça, por exemplo. Aí ele estende a mão e eu estendo a minha ao mesmo tempo. É desse tipo de harmonia que eu estou falando, entende?
A gente está aqui, com os dedos entrelaçados, e o resto do meu corpo anestesiado. E a minha respiração está tão leve que nem eu percebo se parou ou não. Mas meu sangue não. Sinto minhas veias pulsando na ponta dos dedos. E sinto o coração dele batendo também. Quando nosso sangue alcança o mesmo ritmo, é tão bom que quase assusta.
Mas o telefone toca e a sala fica imediatamente gelada e ele já está fora do meu alcance, em pé, com a mão no aparelho e diz "Alô?".
Aperto os olhos e os lábios, mas sinto que não está dando muito certo.
Daí ele desliga e ainda fica ali por um instante, mas a gente sabe que tudo já está de ponta-cabeça, e não vale a pena abrir a boca para dizer nada, porque lamentar o tal do leite derramado não vai nos levar a lugar nenhum, a não ser a um lugar pior, então, deixa assim...
Ele vai e eu fico.
Agora sim, no silêncio total.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Coletânea

_Talvez você encontre tempo, um dia, para ler.
Nunca encontrei.
Joguei o manuscrito dentro de alguma gaveta e lá ele ficou, aos poucos sendo soterrado por outros e outros. A quem insistia pela minha opinião, eu dizia, com ar cansado: "achei bom, muito bom". Era animador o suficiente para eu não me sentir culpada, e desanimador o bastante para que não me trouxessem mais nada. Mas continuavam trazendo.
E é verdade que eu continuava acreditando que um dia encontraria tempo _e coragem, e paciência, e estômago_ para ler tudo aquilo. Mas naquele tempo eu andava mesmo com outras coisas na cabeça.
Gastava as manhãs na varanda, ao lado da gaiola cheia de passarinhos. Ora cortava as unhas do pé, ora chorava. Nos melhores dias, queria apenas ver o tempo passar. Então almoçava, mesmo sem fome, dava um ou dois telefonemas e sentava diante da televisão. Eu gostava muito dos filmes de comédia, naquela época.
Às vezes alguém batia à porta. Geralmente era um estudante, com uma pastinha na mão. Pareciam tímidos mas, por Deus, era ou não era uma ousadia bater à casa de outra pessoa, uma desconhecida, para entregar contos, poesias e romances não solicitados? Até porque cada história _boa história_ desnuda quem a conta. E parecia que todos os dias batia à minha porta alguém disposto a abrir o roupão, mostrar os seios, ou o pau, e me perguntar "E aí, o que você acha?". Por Deus, eu não estou interessada em sexo no momento.
E batia a porta na cara deles. Educadamente.
E enchia as gavetas da escrivaninha.
A faxineira é que, às vezes, descansava a vassoura para ler algum. Da varanda, eu ouvia seu riso e um ou outro comentário: "Sem chance! Até eu escrevo melhor que esse aqui".
Eu ria também, ao lado dos passarinhos. E eles bicavam alguma frutinha. E as minhas unhas cresciam. Era assim.
Mas um dia flagrei a faxineira chorando, com um desses manuscritos na mão. À noite, abri a gaveta.
Reconheci a letra daquele desconhecido. Parecia muito com a minha. "Talvez você encontre tempo, um dia, para ler", ele disse, com sua voz fraca, enquanto eu me surpreendia com aquela coincidência. Guardei na gaveta e esqueci.
Não posso dizer que tenha chorado. E encontrei alguns erros gramaticais que, honestamente, eram primários. Mas precisei reler e reler e reler aquelas doze páginas até amanhecer. Quando os passarinhos começaram a piar, respirei aliviada.
Agora está lá. Naquele livro que não tenho coragem de abrir, com meu nome na capa. Na varanda, aguardo ansiosamente pelo dia em que ele virá até a minha porta cobrar o que é seu.

Pas de deux


Ela na pose de bailarina, sempre. Mesmo assistindo televisão, sábado à noite, de camisola _o movimento do braço em direção ao controle remoto. Às vezes ele pedia: repete. Ela, distraída: o quê? E era um bocejo, um gole de água, um jeito de esfregar o olho. Ela ria e sacudia os ombros e dizia: pára com isso... E ele sorria porque ela sacudindo os ombros era pura dança. A música era inaudível para os demais.

Guanabara, mon amour

Então era aquilo, a gente sentado, a cerveja quente no copo, uma música chiada na caixa de som. Ele cantaralou baixinho, olhando para os restos de batata frita na travessa. "O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara... Pareceu-lhe uma boca banguela..."
E eu, nem sei por que, disse que achava Caetano uma porcaria.
Na verdade, se alguém me perguntasse naquele momento, eu diria que tudo era uma porcaria: a cerveja, a batata frita, o mundo. Nós dois, principalmente. Nossa vida _uma porcaria. (Lembrei tarde demais do LP que foi o primeiro presente que ele me deu. Era do Caetano.)
Mas ele não pareceu ofendido e cantou mais um pouco.
"O amor é cego. Ray Charles é cego. Stevie Wonder é cego. E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem..."
Então olhou para mim: "Pensei que você gostasse dele".
"Eu gostava." Assim como gostei de você, um dia. Amei. Será que foi isso mesmo? Sim. Eu te amei. Não foi o único nem o primeiro. Cláudio, o nome do primeiro. Moreno e baixo. Por onde andará? Mas talvez você seja o último. O último amor da minha vida e isso me enche de medo do depois.
Ele pegou mais uma batatinha na travessa. Eu também. Estava murcha, fria e sem sal. Engoli. A contragosto, mas engoli. Cansei de ser aquela que reclama de tudo. Da batata, dos discos, da vida.
E amanhã? Eu arrependida, dizendo que eu deveria ter tentado mais. Que eu deveria ter sido mais precavida e pensado no futuro e sido uma boa mulher. Animada. Ótima! Mas eu fui tão honesta _esse erro recorrente de querer demais, de não ser feliz com pouco. Caetano falando devagar para mim: a Bahia é linda, a Guanabara é linda, o mundo é lindo. Mas você, meu bem, é um tédio sem fim.
Nada disso.
"Um brinde a nós dois!"
"Deixa isso aí, já esquentou", ele disse.
"Imagina, está ótima. Ótima! Cerveja é bom de todo jeito, não é?"
"Peço mais uma?"
Céus, como eu queria ir embora daquele lugar e me trancar no quarto e chorar até de manhã.
"Opa, pede sim!" Sorri novamente, mostrando todos os dentes possíveis.
Ele me olhou com curiosidade.
"O que aconteceu?"
"Como assim?"
"Você... Diferente de uma hora pra outra."
"Diferente como? Amigo, faz um favor: traz mais uma. Geladinha."
"Sei lá. Parecia chateada e agora..."
"Deixa disso, meu amor. Chateada, eu? Num domingão, com esse sol? Com uma cervejinha? Com essa batatinha? Come mais uma!" Assim a gente ganha mais alguns minutos de abençoado silêncio, mastigando, mastigando, mastigando. Mastigando. Mastigando. Aquilo já era uma papa na minha boca.
Engoli.
A vida, meu amor, é uma boca banguela engolindo tudo o que aparece pela frente. O carro, a estrada, nós dois. Então numa curva a gente percebe esse fastio, o peso no estômago. Essa vontade de abrir a janela e vomitar até virar do avesso.
"Vou no banheiro."
Diante da pia, uma mulher loira chorava. Tive vontade de empurrá-la contra o espelho. Tá achando a vida ruim, princesa? Bem vinda ao clube! Agora aprenda a ser elegante: me tranquei no meu cubículo e lá sim, deixei a dor vir à tona.
Ninguém viu, ninguém soube. Nem eu mesma, meu bem, ao me olhar no espelho, serei capaz de dizer se chorei ou não.

Mi hermana

Nós duas estávamos sentadas no sofá. Azuis os sapatinhos dela, assim como os meus. Florido o meu vestido, e também o dela. Os laçarotes escarlates nos cabelos. As mãozinhas dadas. Ela tremia. Eu tremia.
- Quem foi? - ele perguntou. A voz ecoou pela sala.
Em silêncio, ambas. Apenas o coração, em velocidade idêntica, como se latejasse não no peito, mas na cabeça, e eu ouvia tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum... Foi ela foi ela foi ela foi ela, mãezinha, socorro, meu Deus, foi ela... Eu vi.
- Quem foi? - ele gritou.
Eu vi, eu não queria ter visto, mas acordei assustada, sentindo no peito o medo dela, como nos pesadelos, a gente sonha igual, mas nos sonhos somos sempre uma só. Eu levantei da cama, eu abri a porta, eu vi.
- Quem foi? - ele explodiu.
Eu não digo. Entrelaçamos os dedos. Eu não digo.
- Foi ela. _ela soltou meus dedos e repetiu com a vozinha fina_ Foi ela.
Eu me virei mas nem consegui ver o rosto dela, tudo branco e brilhante de repente e um zumbido que vinha de longe, que nem um besourinho... Do resto eu não lembro.
Está vendo essa cicatriz aqui no meu rosto?
É a única diferença que existe entre nós.

Alice no meu país

Somos todos seres oníricos e já não me surpreendo quando me entendo metade lebre,
metade um ramo de magnólias.