quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Leito

Era janeiro e cada dia se esforçava para superar o anterior como O Novo Dilúvio. A garrafa de vidro com pequenos marcadores _pluviômetro caseiro que o filho mais velho instalou no quintal_ já havia transbordado e sido esvaziada e voltado a transbordar um sem-fim de vezes.
Os ouvidos acostumaram-se ao pinga-pinga das goteiras nas panelas. As narinas, ao cheiro do mofo. Os olhos, à variação sutil dos tons de cinza.
As crianças, que se divertiram com os primeiros banhos de chuva no quintal, agora convalesciam da gripe diante da tv, que noticiava o efeito das enchentes _casas alagadas, famílias sem teto...
Esse risco eles não corriam, graças a Deus. A casa bem resistente, toda em alvenaria, lá no alto do alto do morro. "É pra gente ficar mais pertinho do céu", dizia o marido.
Ex-marido.
Deus o tenha.
Talvez fosse a melancolia da chuva... Mas, ultimamente, ela vinha sonhando com ele de novo.
Certa manhã, acordou assustada. Pulou da cama, olhou ao redor _o quarto meio diferente. Enfim percebeu: era o silêncio.
Nas panelas e baldes, a água descansava.
Afiou os ouvidos: nem vento, nem chuvisco. Apenas o ressonar entrecortado dos meninos adormecidos.
Correu para a sala na ponta dos pés, como quem salta pequenas poças de lama. Abriu a porta e o calor e a luz do sol invadiram-na toda, ardendo os olhos, formigando a pele e aquecendo o sangue.
Quando seus olhos se acostumaram a tanta claridade, o que ela viu foi uma imensidão de azul. O mar.
A casa, a única ilha.
Uma onda suave avançou pelo jardim e beijou-lhe os pés.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O Retrato de Dorian Gray

Estavam de férias em Foz. Primeira viagem juntos. No caso dela, a primeira viagem de avião. Em êxtase.
"Tira uma foto minha!", pede, se colocando diante das cataratas e abrindo um sorriso de uma orelha à outra. Ele se posiciona e aponta a lente da Nikon comprada no Paraguai.
"Aí não dá", avisa. "Você está na contraluz. Vai mais para lá."
Ela se afasta uns dois passos para a direita.
"Vai mais, vai mais. Aí. Fica parada aí."
"Aqui? Tem certeza que vai dar para pegar as cataratas daqui?"
"Você quer que pegue as cataratas?"
"Claro que sim."
Ele suspira, contrariado. Avalia as condições do entorno e conclui que, do alto do banco, talvez alcance o ângulo correto. Devidamente encarapitado, volta a enquadrar a moça pelo visor.
"Assim não dá. Você está fazendo careta."
"Mas, amor, o sol está vindo bem nos meus olhos."
Ele desce. Entrega a ela os próprios óculos Ray-ban e volta a subir no banco. Posiciona a máquina diante do rosto, ajusta o zoom, suspira e volta a descer.
"E essa sacola? Coisa de pobre tirar foto com sacola na mão. Dá isso aqui."
Volta para o posto, apruma-se. Ela ajeita os óculos, que insistem em escorregar pelo nariz, e se prepara para o flash.
"Que pose é essa?"
"Tô encolhendo a barriga."
"Você tá posando. Faz uma coisa mais espontânea. Mais natural."
"Como assim? Desse jeito?"
"Não. Você consegue ser elegante? Finge que eu não estou aqui, olha ali para a catarata."
"Mas aí eu vou ficar de costas."
"Então olha de lado, porra!"
Ela se encolheu assustada. Virou para o lado, ensaiou um sorriso e a foto, enfim, foi tirada.
O registro exato do começo do fim.
Ele respira fundo. E rasga a velha foto em mil pedaços.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Scriptease


O que é a roupa, senão restrição?
"O decote revela..." Não. Ele cobre os seios.
"A minissaia exibe..." Engana-se. Ela esconde.
Mil vendas para que nossas fantasias sejam protegidas da terrível visão: nossa nudez, entenda, é pura tristeza.
Um corpo nu pode ser belo. Jovem. Rígido.
Mas nunca erótico.
Ou feliz.
Provocativo? Talvez.
Mas em outro sentido _se a intenção é chocar o cidadão puritano, por favor... há que se respeitar até a inteligência das senhorinhas carolas.
Não é choque, o que a nudez provoca. Tampouco uma revisão do conservadorismo opressor.
Também não seduz. Apenas aquele mocinho no início da puberdade cujo turbilhão hormonal o transforma num moto-contínuo de excitação sexual pode ser conquistado pela nudez. Ainda assim, por pouco tempo: em breve, ele descobrirá que a graça está naquilo que ele não pode ver ou tocar.
Nas revistas que folheia com avidez, as moças estão sempre de lado, ou com uma mão protegendo aqui, uma pluma protegendo acolá.
Não é por pudor que elas posam assim.
Mas porque sabem que a nudez real e crua, assim exposta, escancarada diante do outro, geraria apenas frustração.
Eis o meu corpo, e ele é triste.
A nudez exibe toda a minha fragilidade, que é o espelho da sua fragilidade. Quando caem os panos, caem os símbolos. Não há status que se manifeste sem acessórios: na tribo de homens nus, o chefe vai colocar na cabeça uma pena que o diferencie do resto. Tire-lhe a pena, e ele retorna ao anonimato da multidão.
Nus, somos todos carne e ossos e cicatrizes.
Alguns fortes, outros fracos. Sempre vulneráveis.
Jovens e velhos. Sempre efêmeros.
Belos e feios _jamais poupados da insegurança e do medo da rejeição.
Eis o sentimento que a provocativa nudez provoca.
Cubramo-nos, pois, enquanto há tempo.