quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Hokkaido


foto: www.meupapeldeparedegratis.com.br/nature/pages/black-dog.asp

Meus pais eram filhos únicos, e eu também. Quando eles morreram, sobramos apenas eu e meu avô. Sabíamos que a história da família acabaria conosco. Não que fosse uma grande história, mas decidimos passar o resto dela juntos. Assim, larguei meu emprego numa imobiliária e voltei para Santa Rita.
Meu avô me instalou no quarto que havia pertencido à minha mãe e, tirando o colchão, encontrei tudo em bom estado. Nos primeiros dias, jogamos baralho, passeamos pela beira do rio e conversamos sobre os velhos tempos. Não demorou muito, porém, para percebermos que, por menores que fossem nossas necessidades afetivas, o que tínhamos a oferecer um ao outro era muito pouco. E a solidão que experimentávamos juntos era ainda mais incômoda que a causada pela ausência.
Para alegrar o velho, certo domingo saí cedinho rumo à feira da ponte. Quando voltei, trazia pela coleira um cachorrinho preto, com manchas brancas no focinho e nas patas. Na soleira da porta, meu avô parou banguelamente boquiaberto. Espremeu os olhos, que a visão há tempos lhe pregava algumas peças.
- O que é isso, menino? Um cachorro?
- É sim senhor.
- Para mim?
- Pro senhor.
O latido agudo do novo hóspede assustou o velho, que começou a rir do próprio susto, balançando as juntas e esquecido das dores. Ajoelhou-se para afagar o filhote:
- Você vai se chamar Hokkaido.
Pela primeira vez em muito tempo, me senti feliz comigo mesmo.
Foram bons tempos.
Por causa de Hokkaido, meu avô desenvolveu o hábito de caminhar todas as manhãs até o rio. Depois do almoço, o velho roncava na rede e Hokkaido me acompanhava até o trabalho, de onde partia para um passeio solitário. No fim da tarde, ele e o velho apareciam para me buscar. A caminhada se esticava até o trevo, e voltávamos pela estrada velha, atirando galhos secos adiante.
Hokkaido se tornou um cachorro grande, forte e manso. Talvez por isso, eu e o velho também acreditamos ser grandes e fortes. Comprei um belo colchão de molas. O avô, uma dentadura _roía com prazer os ossos do frango assado de domingo.
Mas a natureza sempre sacrifica os melhores, e Hokkaido foi atropelado por uma caminhonete na estrada velha. De volta ao mundo dos fracos, mal consegui carregá-lo até em casa. Sobre a cama que havia pertencido à minha mãe, Hokkaido agonizou e morreu. De manhã, o enterramos perto do rio.
- Ele sempre gostou desse lugar _disse o velho, olhos perdidos no balanço dos juncos.
Chutei com a ponta do sapato o resto de barro grudado na pá. Seria o caso de fazer uma oração ou algo assim?
Mas o velho já se afastava.
- Vô _chamei_. Por que o senhor escolheu esse nome? Hokkaido?
- Ah isso... _ele virou-se levemente para mim_ Faz muito tempo, eu conheci uma mulher. Uma japonesa. Foi um grande amor.
Ele suspirou.
-Não me entenda mal: a sua avó era uma mulher maravilhosa e fomos felizes juntos. De todo modo, o que passou passou. Não se fala mais nisso.
Voltamos para casa em silêncio.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

O tempo do tempo

Sim, ele voltou, como ela esperava que voltasse.
Ela só não esperava que ele voltasse assim, tão rápido.
E se ela o aceitou, não foi sem uma pontada de saudade da solidão que mal pôde experimentar.