segunda-feira, 26 de março de 2007

Miúdos

Segurava o garfo na frente da boca e num relâmpago lembrava que muito tempo atrás um menino mais velho a havia obrigado a comer uma barata. Era isso e, em seguida, a falta de apetite e, um pouco mais tarde, a indigestão que lhe acompanhava pelo resto do dia.
Na manhã seguinte esquecia e comia, mas nunca muito. A barata lá, dormindo no fundo do fundo do estômago. Se passava muito tempo quietinha, a moça até ganhava uma ou duas curvas e se sentia bonita, andando de short pelo calçadão.
Mas se os olhos tropeçavam em qualquer bicho morto, a outra acordava e corria por dentro, roçando as perninhas em cada víscera. Ela trincava os dentes de horror e definhava, sem remédio, terapia ou reza à qual apelar.
Sentia fome, sim. E nunca quis que as costelas aparecessem sob a pele. Era isso que não entendiam. O problema era o menino, e a barata, e aquela sensação entalada na garganta de que ainda estava presa naquela tarde, para sempre com seis anos e lutando para engolir o choro.
Também foi com muita luta que conseguiu engolir, após anos de fome, aquela coleção de comprimidos coloridos. Eles também se agarraram à lingua e arranharam a garganta, mas ela venceu um a um.
Ainda tentaram salvá-la. A dúvida é: de quê? Seja como for, não conseguiram. Após a lavagem estomacal, a única coisa que saiu lá de dentro foi uma barata, que logo fugiu por baixo da porta. Enquanto os médicos olhavam aquilo assustados, a enfermeira tentava prender o corpo da moça à maca. De tão leve, ele parecia querer flutuar.

2 comentários:

Simone Iwasso disse...

me lembro quando vc me mostrou, falei que tinha algo de clarice...e agora relendo, é um dos meus preferidos

Mariana disse...

Não tem outro remédio para essa barata engolida, não??
Jura??? Diz que tem...
Beijos. Estou amando isso aquim vizinha!