segunda-feira, 2 de abril de 2007

Aguardente

Janaína tinha cabelos negros, pele morena e gengiva quase roxa, da qual pendia uma fileira de dentes brancos _os caninos, principalmente, eram grandes e alvos, o que lhe custou o apelido de vampira.
Para fugir da brincadeira, e também porque a vida não andava assim tão fácil, Janaína nunca sorria. Também não falava muito. E comia escondida, de costas para nós, voltada para uma parede de azulejos amarelos.
Sempre que vinha até o balcão, o cozinheiro a espiava com o canto do olho. Logo começou a se demorar por ali, a puxar assunto, a caprichar no prato dela. Ofereceu um refrigerante, pagou a refeição inteira e prometeu mundos e fundos. Mansa, Janaína esperava o bar fechar e seguia com ele para casa.
Dizem que ela foi feliz por um tempo, embora constantemente aparecesse com os olhos vermelhos e manchas roxas na pele morena.
Até que sumiu do bar _alguém percebeu que faltava algo na parede de azulejos. Uma prateleira? Um relógio? Depois lembramos _ah, a mulher de cabelos negros. Surgiram boatos sobre as coisas que havia sofrido. Olhamos de soslaio para o cozinheiro, pedimos a saideira, a conta e, sem uma palavra, fomos embora.
Cada um seguiu seu rumo _naquela noite e nas seguintes. Um dia aqueles velhos amigos vão se encontrar no meio da rua e dar boas risadas ao lembrar aquelas noitadas. Até que alguém vai mencionar o velho bar, o nosso bar, e todos sentirão uma vontade urgente de seguir novamente em outra direção.
É que a ausência de Janaína... Não, ela havia sido apenas uma piada a mais, sem importância. Era o eco que a falta dela havia causado em outro vazio, o silêncio reverberando pelo oco dentro de cada um de nós até bater com força contra o estômago.
Eu a encontrei anos depois, sentada em outro bar. Foi um susto: ela está viva! Sim, estava. Mas já não era a mesma: à custa dos tantos socos que havia recebido do cozinheiro, já lhe faltavam alguns dentes. Os caninos deram espaço a dois buracos. Contava tudo isso rindo.
Ria loucamente.
Talvez por saudade dos velhos tempos, porém, só se veste de preto e evita a luz do sol. Seu rosto é pálido e o cabelo, cinzento. "Lembra que vocês me chamavam de vampira?", ela perguntou a certo momento, olhando para o movimento lá fora. Respondi que sim. Ela riu novamente, cheia de mágoa. "Acho que sou mesmo imortal."
Só consegui deixar sobre a mesa uma nota de vinte reais.

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