terça-feira, 3 de abril de 2007

Ato

Ao fim da peça, todos vão ao camarim cumprimentá-la. Que força! Que coragem! Que interpretação vigorosa! Quem diria que ela tem 85 anos?, assombravam-se alguns.
Há um cheiro adocicado no ar _vem das dezenas e dezenas de camélias, suas preferidas. Vem do chá de erva-doce, morninho no bule. E do talco importado, sob o pompom, rodeado por sombras, batons, cremes e lápis e um sem-fim de cores. (e o preto-e-branco das fotos testemunhando a trajetória da grande dama)
Que beleza! Que corpo! Que boca! Que olhos!
Ela surge, irreconhecível.
Curvada, miúda, frágil.
Em tons de sépia.
Afastem-se!, pedem alguns, para que ela se sente. Ela se senta. Ela tosse. O chá!, pede a platéia. O chá lhe é servido. Ela sorri e beberica, em goles de passarinho. Acena para velhos conhecidos. Jovens atores se aproximam, querem um autógrafo da "lenda viva", diz um, e logo se arrepende do comentário.

Ela pede os óculos _ninguém encontra os óculos. Pedem então que ela beije um papel. Ela beija, mas já não há batom em seus lábios ressequidos.
Pois que passe um batom, pedem os estudantes.
Ela hesita. Não consegue passar o batom sem os óculos. Os óculos! Os óculos!, grita a audiência. Ninguém sabe onde estão.
Afastam os estudantes. Aproxima-se o casal, com aplausos. Ele limpa a garganta antes de dividir com todos suas breves palavras sobre a urgência de os empresários desse país acordarem para a importância de apoiar a produção artística que se faz aqui, que se não for igual, é ainda melhor que a do primeiro mundo, tamanha a criatividade e coragem e determinação desse povo que é sofrido, mas que não desiste nunca.
Ela agradece o patrocínio, agradece a presença de ambos, e aceita silenciosamente o olhar assustado que a mulher loira oferece, com medo do tempo, com medo das rugas, com medo de ser mulher.
Então é isso o que acontece quando se apagam as luzes e se fecham as cortinas? Cadê a força, a coragem, o vigor que ela mostrou agora mesmo, no palco? E esse cansaço? É isso o que existe por trás da maquiagem? Cansaço?
Sim, ela está cansada e pede desculpa a todos. Alguém a ajuda a se levantar e lhe ajeita o casaco sobre os ombros. Acena a todos antes de abandonar o camarim.
(e lança um beijo às camélias, que, já quase murchas, se lançam ainda num último golpe de perfume)
Em casa, quando as luzes se apagam e as cortinas se fecham, ela se espreguiça inteira. Com seu uísque on the rocks e um pouco de jazz, respira aliviada. Ri dos estudantes estúpidos, ri do palco, ri da própria proeza: transformar a atriz em seu melhor personagem. Desafia o espelho com um olhar atrevido: sim, há cor em seus lábios.

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