quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Leito

Era janeiro e cada dia se esforçava para superar o anterior como O Novo Dilúvio. A garrafa de vidro com pequenos marcadores _pluviômetro caseiro que o filho mais velho instalou no quintal_ já havia transbordado e sido esvaziada e voltado a transbordar um sem-fim de vezes.
Os ouvidos acostumaram-se ao pinga-pinga das goteiras nas panelas. As narinas, ao cheiro do mofo. Os olhos, à variação sutil dos tons de cinza.
As crianças, que se divertiram com os primeiros banhos de chuva no quintal, agora convalesciam da gripe diante da tv, que noticiava o efeito das enchentes _casas alagadas, famílias sem teto...
Esse risco eles não corriam, graças a Deus. A casa bem resistente, toda em alvenaria, lá no alto do alto do morro. "É pra gente ficar mais pertinho do céu", dizia o marido.
Ex-marido.
Deus o tenha.
Talvez fosse a melancolia da chuva... Mas, ultimamente, ela vinha sonhando com ele de novo.
Certa manhã, acordou assustada. Pulou da cama, olhou ao redor _o quarto meio diferente. Enfim percebeu: era o silêncio.
Nas panelas e baldes, a água descansava.
Afiou os ouvidos: nem vento, nem chuvisco. Apenas o ressonar entrecortado dos meninos adormecidos.
Correu para a sala na ponta dos pés, como quem salta pequenas poças de lama. Abriu a porta e o calor e a luz do sol invadiram-na toda, ardendo os olhos, formigando a pele e aquecendo o sangue.
Quando seus olhos se acostumaram a tanta claridade, o que ela viu foi uma imensidão de azul. O mar.
A casa, a única ilha.
Uma onda suave avançou pelo jardim e beijou-lhe os pés.

5 comentários:

Mariana disse...

Uma casa flutuando solitária no mar...
Nunca me canso desse seu lirismo imbatível!
Beijos.

Anônimo disse...

É assustador, tenebroso e lindo.

Simone Iwasso disse...

que imagem linda, ilis. me lembrou um conto que li outro dia, de unm autor uruguaio genial chamado felizberto hernandez. era sobre uma casa inundada. sobre uma mulher que gostava de ouvir a água e tinha mandado inundar toda uma casa. só a fonte, ela mandou encher de terra, para virar uma ilha.

Simone Iwasso disse...

ah, já levei a bronca pelo furo da bassette. please, forgive me

Ilis disse...

Mari, obrigada! Estou "se sentindo" por ter recebido a palavra "lirismo". :)
Gracias

Cacau, seu comentário me levou a uma pergunta: o susto faz parte da beleza? penso no assunto...

Simone... O "furo" vai ser o dia que tu aparecer, né?
;)
Me mostra esse texto que você mencionou, por favor.

Beijos
Beijos
Beijos