Era a ex-mulher _ele mal reconheceu a voz ao telefone, até ser atingido por aquela antiga ânsia, as mãos geladas, a boca seca: quis desligar, arrancar o aparelho, sair correndo.
Mas a linha ficou em silêncio, e ele chamou:
Maria?
Maria, você ainda está aí?
Ela pareceu impaciente. "Sim! Estou esperando: você vai ou não vai?"
Onde?
Ela repetiu devagar: "Para o casamento da sua filha".
Foi a vez dele ficar em silêncio.
A mulher esperou, e sua voz voltou mais suave. "Eu sei que faz muito tempo. E que você não gosta dessas coisas. De sair daí... Mas eu não estou pedindo isso à toa. Seria muito importante para ela."
Pela sua cabeça passavam cenas de uma menina magricela aprendendo a andar de bicicleta.
"Bom, é isso. A Aninha não fala muito sobre essas coisas, mas eu sei que ela gostaria que você viesse. Pense um pouco nela. E pense em você também."
Ela esperou mais um pouco.
"Mandamos um convite. Deve chegar na próxima semana. Tem os nossos telefones, o endereço. Se você resolver vir, avise."
Ele envelheceu um século naqueles minutos.
Quantos anos haviam se passado? Quinze? Vinte? Ele não se lembrava mais. Na solidão do sítio, o dia era dia, a noite era noite, e era sempre hoje.
Aninha cresceu.
Agora ele tinha dois cachorros, um deles já manco e meio cego mas que, na escuridão da noite, ainda latia bravamente para possíveis intrusos. Quando o diabo do cachorro foi atropelado e ficou naquele morre não morre, o homem sofreu o inferno.
Era pai.
Devia aquilo à menina.
Provavelmente devia muito mais, mas dane-se. A menina ia casar e ele ia entrar na igreja com ela. Dane-se o resto.
No dia seguinte, amanheceu na estrada. A velha caminhonete rangendo e puxando para a esquerda e Xerife com a cabeça na janela, orelhas ao vento.
Passou no barbeiro, cortou o cabelo, aparou os tufos grisalhos que escapavam pelas orelhas e pelo nariz. Na loja, fez questão de explicar à vendedora: preciso de uma roupa para ir ao casamento da minha filha, Ana Cristina.
Eram umas peças incômodas como o inferno, e o preço era um roubo. Mas ele pagou _foi a roupa pendurada na cabine e o Xerife na carroceria, apesar da chuva fina.
Devidamente preparado, passou a semana inteira em agonia. O olho fixo na porteira, à espera do convite. Se os cachorros latiam, arrepiava-se todo _depois chutava um e outro pelo falso aviso.
Tentava imaginar a filha, mas o resultado era sempre uma mulher alta demais com cara de criança. Ao lado de uma bicicleta.
Esperava que o convite ao menos trouxesse uma foto. Não trouxe. Só o nome dela em letras douradas. E lá no alto, à esquerda: filha de Maria. E de Antônio.
Ana Cristina, filha de Antônio.
Pela primeira vez, em muito tempo, ele chorou.
Dane-se, não ia mais nesse casamento.
Aquela outra vida havia sido há muito tempo, e já tinha sido difícil ir embora uma vez _a mulher nunca entendeu que era uma questão de sobrevivência. No meio do mato, completamente sozinho, ele enfim conseguiu dormir, conseguiu respirar. Encheu os pulmões com o ar fresco e voltou a caminhar pelo sítio, amassando a relva com as botas, Xerife mancando logo atrás.
Mas à noite sonhou com a menina e acordou transtornado: Aninha caía num buraco e ele não conseguia alcançá-la.
Não havia espaço para dúvidas: ela precisava dele. E isso dava medo, mas não era ruim. Na verdade, era bom. E ele, apesar de todos seus defeitos, era um homem bom. Não mentia, não roubava, não era chegado em briga nem em bebida. E mesmo a sua reclusão havia sido algo bom _poupou Maria e Ana Cristina de si mesmo. Elas talvez nunca entendessem, mas foi por amor.
Só que as coisas mudam e Ana Cristina precisa do pai ali, de mãos dadas. Para entrar na igreja. Para enfrentar o padre. Para mostrar ao noivo e aos sogros que ela também tem família. Aliás, o noivo _ele precisava conhecer esse rapaz. Saber se a filha fez uma boa escolha.
Quem era ele para dar conselhos amorosos? _riu da própria incompetência.
Mas, de homem para homem, ia olhar nos olhos daquele rapaz. Na hora de entregar a mão da filha, ia encarar aquele moleque como quem diz: você vai cuidar dela.
Não vai fugir.
Não vai se acovardar.
Não vai fugir.
Rascunhou mil vezes uma longa carta, preparando o genro para a vida. Ora ameaçava, ora desabafava a própria solidão. "Fatalmente _chegou a escrever_ chegará o dia em que você pensará em abandonar tudo. Você caminhará até a esquina e sentirá que, se der mais um passo, não haverá volta." Por fim, desistiu. Não havia nada a dizer.
Só pedir perdão à filha.
E, desse jeito, recuperar a fé da menina em finais felizes.
"Sim", ele diria a ela, "eu sei que você tem medo, mas seu pai está aqui e vai dar tudo certo."
Foi assim, humilde e nobre, que ele se aproximou da igreja.
Maria estava linda.
Ela sorriu ao apertar sua mão. E agradeceu.
- A Ana Cristina ainda não chegou. Mas ela vai ficar tão feliz por saber que você está aqui.
Recomendaram que sentasse numa cadeira e ele aguardou, quase imóvel, a hora de ser chamado.
Mas os malditos sapatos torturavam seus dedos. A camisa coçava. E a gravata apertada sufocava que era o diabo.
Não conseguia respirar.
E pela porta lateral, fugiu novamente.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
6 comentários:
Ai, que trágico!!! O pior é a sensação que tem muita gente assim. Que sofre o diabo, mas não consegue atender a qualquer expectativa, talvez nem a que cria para si próprio. Mas o texto é muito bom, Ilis... Um beijão
pois é, Dé, cada um com seus limites...
infelizmente.
cada um com seus limites... nada como as palavras da própria autora sobre a obra. melhor do que qualquer coisa que eu pudesse falar. vc é boa, ilis. beijo!
adendo: ou seria "felizmente"?
obrigada, sissi.
beijos!
Fantástico!!!
Mariana Miranda
Mariana, obrigada pela visita!
:)
bj
Postar um comentário