sexta-feira, 27 de abril de 2007

A deusa leoa

1.
É difícil definir como tudo começou, mas, algum tempo após a visita ao zoológico, as professoras começaram a ouvir os primeiros comentários sobre a deusa leoa.
Até onde podiam perceber, por meio de algumas redações e desenhos infantis, era uma mulher grande e forte, com traços felinos e uma cabeleira vasta. Enrolava-se numa manta com estampa de onça, mas mantinha os seios à mostra _a nudez, que chocou algumas novatas, foi o que levou o assunto à sala de reuniões. Meio envergonhada, tia Lu espalhou sobre a mesa algumas folhas cobertas pela imagem daquela mulher desnuda.
Seu rosto estava vermelho como após um tapa. A muito custo havia conseguido explicar a uma mãe que seu filho gostava de tirar a bermuda na sala: a mulher teve um ataque e prometeu uma surra na criança. Culpada, chorou dia e noite pelo menino. Agora essa... Ela realmente não sabia o que fazer.
As professoras se reuniram ao redor da mesa. Uma comentou que a mulher parecia um gato. Alguém comentou que havia visto desenhos parecidos. Outra lembrou da tal deusa leoa. Deve ser de algum video-game, especularam, e a coisa toda foi logo esquecida.
Como solução, tia Lu aboliu o "tema livre" das aulas de arte. Na semana seguinte, as crianças ouviram atentamente sobre os meios de transporte e a professora sorriu aliviada ao ver tantos desenhos de carros, trens, aviões e navios.
Dez pra todo mundo.
2.
Quase um mês depois, o primeiro passarinho apareceu morto no centro do pátio.
Pelas janelas saía o canto cristalino das crianças, que aprendiam a entoar o hino da escola.
No dia seguinte, o segundo.
No terceiro dia, um sabiá.
Em silêncio, os funcionários observavam a chuva de passarinhos.
Quando um filhote de gato _frio e duro como uma pedra_ apareceu no meio do pátio, sobre uma mancha de sangue, as professoras sentiram um calafrio percorrer a espinha. Chamaram o coordenador, que não quis alarde _agradecia diariamente a Deus pela vida solitária e sem sustos que havia conquistado.
Colocaria o bedel de tocaia.
E mais um passarinho apareceu _pescoço quebrado como os outros, plumagem amarela_ assim que o sinal tocou. Em fila indiana, as crianças entravam nas salas sem sequer olhar para trás. As professorinhas se entreolhavam arrepiadas.
Tinham medo de entrar na classe. Tia Lu quase desfaleceu quando uma menina de angelicais olhos azuis segurou sua mão. O sorriso, apavorou-se, era cruel. Correu para a sala dos professores, o coração aos pulos, ainda sentindo no pulso os dedos quentes da menina.
Dane-se a pedagogia _escolheram o menino mais tímido e o trouxeram para a diretoria: ou explicava a história do gato ou enfrentava as conseqüências. O mijo na calça, a chupeta velha, o pai bebedor _nada daquilo seria segredo. Chorando, o menino ruivo recebeu ainda duas palmadas antes de começar a falar.
3.
O coordenador até achou graça na história da deusa leoa, embora a idéia dos sacrifícios fosse realmente estranha. Com crianças, costumava dizer, o melhor era ignorar. Com o tempo a fantasia arrefece e as coisas se ajeitam _era o que a experiência lhe ensinara.
Mas o caso já havia chegado aos ouvidos dos pais e era preciso acalmar os ânimos. Alguns já falavam em seitas _num colégio católico! Ameaçavam retirar os filhos e ir à imprensa.
Diante dos desenhos, apresentados como prova por professoras histéricas, ele imaginava a si mesmo respondendo perguntas primitivas num programa de televisão. Por Deus, ele sabia que o que as irritava mesmo eram os seios à mostra. No fundo, eram até desenhos bonitos. E desde quando deuses antropomórficos eram novidade?
Pediu à secretária que enviasse a todos os pais uma cartinha: dentro de dois dias, reunião geral. Tema: aprendendo a lidar com a imaginação infantil.
Percebeu que a secretária lhe dirigia um olhar impaciente e severo. Seu corpo parecia prestes a declarar guerra.
Pigarreou e corrigiu, com voz grave.
Tema: desafios na evangelização infantil.
Insatisfeita, a secretária tamborilou os dedos na mesa enfaticamente.
Ele engrossou ainda mais a voz, antes de dar as costas: está dispensada.
O grito ecoou pela sala.
O coordenador olhou irritado para a secretária, que parecia petrificada diante da janela. Ao afastar a cortina, o homem quase caiu.
Sobre o cimento do pátio, jazia um menino de cabelos ruivos.

Um comentário:

Simone Iwasso disse...

é, nada clarice, mas belíssimo, e super intenso. eu gostei demais.