quinta-feira, 22 de março de 2007

Quase


O telefone toca. Grita, grita, até ficar rouco. Mas a gente nem se mexe. Quando o silêncio se junta à escuridão da sala, eu me espreguiço e ele se espreguiça e nossos pés se tocam sobre a mesinha de centro. Seus dedos estão frios.
Penso na coberta jogada sobre a cama. E numa xícara de chá quente. Mas deixo por isso mesmo.
O telefone toca novamente. Ele afasta o pé. Será que vai se levantar?, eu penso. E aperto os olhos e os lábios para impedir que ele se levante _é o tal do poder da mente. Li sobre isso em algum lugar. Não sei se funciona, mas ele continua parado, apesar do som estridente. Ponto pra mim.
Ficamos em silêncio de novo. Quer dizer, não um silêncio total, porque tem os grilos lá fora, e as estrelas _elas também fazem barulho, daquele tipo bem baixinho, de coisas tilintando quando o vento bate. Para mim é assim, pelo menos. Não sei como é para ele. Talvez ele também ouça mas é melhor não perguntar porque se ele for surdo nesse sentido, aí é como se algo se quebrasse entre nós, entende?
Harmonia é uma coisa complicada. A gente acha que tem aquela conexão, aí tudo vira de ponta-cabeça e já era. Você olha de repente para aquele fulano e pensa: quem é essa pessoa? Eu sei porque isso já aconteceu comigo. Acho que já aconteceu com todo mundo. E pra mim já deu. Por isso deixa o telefone para lá, esquece o cobertor, esquece o chá, esquece esse papo doido sobre as estrelas. Eu vou ficar bem quietinha.
Mas aí o telefone toca novamente. Eu sinto que ele já está nervoso. Eu também estou, só que fiz uma coisa inspirada em ioga durante um tempo e aprendi a controlar algumas coisas com a respiração. É assim: inspire profundamente até inchar a barriga... triiiimmmmm... expire profundamente... triiiiimmm... inspire profundamente...
Quando percebo, o telefone já parou de agredir a gente e dá é para ouvir a minha respiração. Mesmo no escuro, sinto que ele está olhando na minha direção. Talvez esteja curioso porque eu sou assim, cheia de técnicas. Também tenho algumas para acabar com a dor de cabeça, por exemplo. Aí ele estende a mão e eu estendo a minha ao mesmo tempo. É desse tipo de harmonia que eu estou falando, entende?
A gente está aqui, com os dedos entrelaçados, e o resto do meu corpo anestesiado. E a minha respiração está tão leve que nem eu percebo se parou ou não. Mas meu sangue não. Sinto minhas veias pulsando na ponta dos dedos. E sinto o coração dele batendo também. Quando nosso sangue alcança o mesmo ritmo, é tão bom que quase assusta.
Mas o telefone toca e a sala fica imediatamente gelada e ele já está fora do meu alcance, em pé, com a mão no aparelho e diz "Alô?".
Aperto os olhos e os lábios, mas sinto que não está dando muito certo.
Daí ele desliga e ainda fica ali por um instante, mas a gente sabe que tudo já está de ponta-cabeça, e não vale a pena abrir a boca para dizer nada, porque lamentar o tal do leite derramado não vai nos levar a lugar nenhum, a não ser a um lugar pior, então, deixa assim...
Ele vai e eu fico.
Agora sim, no silêncio total.

2 comentários:

Simone Iwasso disse...

harmonia. acho que só de o momento existir, já vale o antes e o depois...

Ilis disse...

E sabe o que tenho pensado, Si?
Que a harmonia é o antes e o depois...

Como caminhar sobre uma corda-bamba é, na verdade, um processo dinâmico em que o equilíbrio é feito de desequilíbrios para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás.

Sei que a idéia é estranha: a harmonia ser, na verdade, um olhar amoroso sobre o que é, na prática, uma sucessão de desarmonias.
Mas, para mim, isso tem feito sentido.
E para você?
:)
bj