quarta-feira, 5 de março de 2008

Então eu percebi

Fiquei confusa, claro. Mas resolvi retribuir os olhares. Afinal, o moço era até bem-apessoado. E eu já estava cansada de tanta solidão.
Respirei fundo e... sorri. Quando ele se virava em minha direção, eu me virava também. Quando nos encontrávamos no corredor, eu tentava ajustar meu passo ao seu ritmo. Se compartilhávamos por instantes o vazio do elevador, eu admirava seu rosto com ternura. E sorria.
Ele jamais retribuiu um sorriso.
Na verdade, parecia irritado com aquela recente reciprocidade. Nossos olhares se cruzavam _ele desviava o rosto. Eu me aproximava _ele mudava de rumo. Começou a me dedicar muito mais distância e frieza do que a qualquer outra funcionária da repartição.
Eu quis me esconder num buraco, claro. A conclusão óbvia: confundi tudo _de novo. A alucinação da carência. Vexame.
Mas quando enfim tive coragem de erguer os olhos acima da pilha de memorandos. Nos reencontramos.
Foi um olhar breve, quase nada. Mas suficiente para eu entender seu pedido.
Não queria chope, cinema, motel. Nada disso.
Só uma coisa: a posse da fantasia.
Aquele affair imaginário era dele.
Só dele.
A mim, cabia a gentileza de virar o rosto e voltar à via-sacra dos relatórios, fingindo-me alheia às falsas intenções de meu admirador pretensamente secreto. Ocupar o espaço do ser amado. Mas não me atrever a amá-lo.
Ser objeto de desejo. Não desejar.
Respirei fundo e... obedeci.
Pode parecer pouco. Pode ser doentio. Ou machista.
E é.
Mas às vezes sinto seus pensamentos roçarem a minha nuca.
E posso garantir que não há prazer igual.

9 comentários:

Anônimo disse...

Ílis, você é a bem-amada que mais entende as mal-amadas do mundo. A campeã das situações inusitadas. Adoro.

Anônimo disse...

Ah! E você já sabe: esse título é delicioso.

Mariana disse...

Nada como uma boa paixão imaginária para animar a repartição... Aliás, gostei da definição acima: a bem-amada que mais entende as mal-amadas! Boa...
Beijos, moça.

Anônimo disse...

Não gostei das duas sentenças finais, mas o texto da Ágatha é de um frescor...

http://cotidianodascidades.blogspot.com/

Dê uma olhadinha no mais recente. Beijo

Ilis disse...

cacau: claaaro que eu fiz o título sabendo de ti, né, coisa?
;)
e obrigada pela sugestão. gosto muito do blog da Ágatha.

mari, tem um ditado que diz: onde se ganha o pão, não se come a carne.
defendo essa idéia.
;)

quanto a essa história de mal-amadas... ah, confesso que não gosto dessa expressão. para mim, é a forma que alguns homens encontraram para definir mulheres menos "doces" e "dóceis". algo no nível (baixo) de "mal comida".
e vocês, o que acham?
vocês acreditam em "mal-amadas"?

bjs!

Anônimo disse...

Seriamente acredito. Acredito em mal-amadas que têm muito sexo e pouca satisfação; das que tem atenção a beça e nenhum carinho de verdade; das que são queridas por pessoas que nem elas admiram; e as que não tem nada, nada e nada. E tudo isso vem a tona, das maneiras mais estranhas.

Mas relendo seu texto, começo a duvidar que a personagem se enquadre nessa categoria. Seja como for, creio que as mal-amadas existem, não é só machismo obsoleto não.

Beijo

Anônimo disse...

Ilis, compartilho deveras do ditado do pão. Se a essa altura eu não compartilhasse, hem? Lições estão aí para serem aprendidas. E Cacau, esse conceito de mal-amada é tão complexo. Fico tão furiosa quando alguém diz que fulana fez isso ou aquilo porque é uma mal-amada, atribuindo tudo à freqüência de sexo. Quantas pessoas com vida tão ativa são simplesmente impraticáveis e vice-versa. O problema não é a vida sexualmente ativa ou inativa. O xis da questão é a fraqueza de amor próprio aliada à fraqueza de amor aos outros. Bem, mas aí está um assunto para futuros textos e discussões. Beijo!

Rackel disse...

Hihihiih... eu li o 'então ele percebeu' antes de ler esse daqui! agora entendi pq os outros comentarios referiam-se a 'vingança'! rsrsrs

po, mto bom o texto e a continuação dele!
rs

=*

Ilis disse...

Dé, esse tema rende uma enciclopédia Barsa!
:)

Rackel, que bom que tu se divertiu. V de vingança.
;)
bj