terça-feira, 11 de março de 2008

Então ele percebeu...

Acontece que certo dia, uma sexta-feira, ela chegou ao trabalho com a mesma roupa da véspera.
Logo ela, que em sua vaidade-classe-média, jamais usara a mesma blusa duas vezes numa semana. E logo ela, que a custo de muito gel sempre mantinha cada fio de cabelo preso num coque rente à nuca, apareceu naquela manhã com a juba solta, ouriçada e rebelde.
Para piorar o estrago: batom. Daqueles vermelhos. Cor de sangue. Batom de vagabunda!, ele pensou, agarrado à mesa. Mesmo de longe, conseguia farejar o cheiro que ela exalava... Um cheiro almiscarado que ocupava toda a repartição. Rangeu os dentes... Cheiro de homem!
Levantou-se para fumar um cigarro, esfriar a cabeça. Pediu um café e virou o copo como se fosse pinga. A bebida desceu fervente, rasgando tudo. Pediu mais um.
A vontade mesmo era de ir lá tirar satisfações. Mas de quê? Três ou quatro olhares fortuitos, um esbarrão no elevador, se tanto. Era esse o relacionamento que tiveram. O resto foi fantasia _ele imaginou o diabo a quatro com aquela mulher, verdade seja dita. Coisas que agora até se envergonhava de lembrar.
Mas não era o único culpado. Não, senhor. Ela sabia muito bem. Mulher sempre sabe. E ela nunca fez cara feia. Fez? Muito pelo contrário. Desviava o olhar e fazia cara de sonsa. E era disso mesmo que ele gostava. Isso que atiçava a sua curiosidade. O cabelo arrumado. A roupa bem passada. O salto baixo. Tudo certinho demais, como a calma que reina antes das grandes catástrofes.
Terremoto, vulcão, ciclone, tudo junto. Ela explodindo feito bomba. Relatórios voando pra todo lado. Ele rasgado, arranhado, devorado, caído no chão.
Pode parecer bobagem. E é. Mas era isso que ele imaginava.
E foi o que aconteceu.
Mas de um jeito que ele não previu.
Virou o terceiro copo e decidiu voltar à repartição. Foi entrar e sentir logo o cheiro dela impregnado no ar. Pura náusea. Vomitou ali mesmo meio litro de café.
Os colegas acudiram. Em quinze anos de firma, nunca viram o Moreira assim pálido, frio. Alguém trouxe um copo d'água, o chefe disse que era melhor ele ir para casa.
Ela apenas olhou de longe. Ele arrumou a mesa, pegou a pasta e se arrastou pelo corredor. Diante do elevador, virou-se devagar e a olhou uma última vez. Com desprezo, ódio e dor.
Ela esperou ele partir.
E sorriu discretamente.

10 comentários:

Anônimo disse...

Feio dizer, mas vingança costuma ter gosto bom!

Anônimo disse...

Me divertindo até agora. Please, faça sempre isso por nós: vingança, mesmo que seja só no plano das idéias. De repente, no dia seguinte, alguém aparece no trabalho de batom vermelho.

Engraçado, também coloquei um texto de "continuação" no fotolog essa semana. Não um ao estilo "resposta" ou "Ele disse/ela disse" como o seu, mas ainda assim, parece que estamos numa sintonia próxima. Vou mandar um texto sobre afinidade para você.

Beijo querida

Simone Iwasso disse...

ílis, vc domina uma arte rara, sabia? é aquela que sabe transpor pro papel o que acontece no ar, tudo o que não é dito, tudo o que fica sentido apenas. isso é difícil, mas vc faz tão bem...
é como se iluminasse pontinhos escuros da vida...

Ilis disse...

Dé, seu comentário me lembrou uma frase que vi ontem e adorei, acho que é o slogan (ou algo do tipo) da revista Gula:
"A melhor vingança é comer bem".
(sem duplo sentido, heim?)

Cacau, eu sabia que tu ia se divertir! ;)
E eu vi o seu post-continuação antes de escrever esse... Ó o plágio, medo do Bope!

Simonete, obrigada. Mas tu acredita se eu disser que odeio o "não-dito"? No dia-a-dia, sou 100% adepta de pôr as cartas na mesa e esclarecer tudo de uma vez...
Confesso que fico incomodada com as entrelinhas da vida!

Beijos!

Anônimo disse...

G-E-N-I-A-L !!!!!

Ilis disse...

obrigada, anônimo! fique à vontade que a casa é sua.
:)

Rackel disse...

Adorei esse texto... é como a leitora simone disse aqui em cima, 'vc tem o dom de transpor pro papel o que acontece no ar, tudo o que não é dito...'

Eu um dia ainda vou escrever assim...

bjs

Ilis disse...

Obrigada, Rackel!
:)
bj

Rê Piza disse...

Nós, meninas, conseguimos ser terríveis. Isso é maravilhoso! haha
É vero o que Simone disse ali em cima, em vários textos vc transcreve o que fica em suspenso no ar. Talvez faça isso tão bem justamente por não gostar dos não-ditos. Me lembro daquela sua história do casal tirando fotos, em que naquele momento começava o fim. É isso aí, Ílis, muito muito bom, me divirto!
um bj

Ilis disse...

Thanks, Rê!
:-D
bj