Descendo a rua, vasculho o fundo da bolsa à procura das chaves _são todas quase iguais: o mesmo tamanho, o mesmo formato, a mesma cor. Mas meus dedos sempre adivinham qual é a certa e, pronto, eu destravo o portão. Então escolhem outra e, pronto, eu abro a porta do prédio. Por fim, encaixam a terceira na fechadura do meu apartamento e, voilá: home sweet home.
Tento fazer um ar casual, enquanto tiro o casaco e coloco água na chaleira para preparar um chá. Mas a verdade é que isso me espanta: como meus dedos descobrem a chave certa?
Se eu olhar para elas, sou incapaz de dizer qual é qual. Mas, ao longo dos últimos anos, algo em mim aprendeu a diferenciá-las.
Eu sei e eu não sei. Ao mesmo tempo.
* A chaleira apita.
Somos tão acostumados a passar o mundo pelo filtro da razão que assusta mesmo lembrar desse eu que dispensa qualquer discurso racional para existir.
Enquanto sonho/calculo, aceito/evito, busco/desisto e faço mil conjecturas; o sangue corre, as unhas crescem, a ferida cicatriza.
Bem mais eficientes que minha metade-pensante.
O que torna incoerente, para mim, aquela antiga dicotomia: alma versus corpo.
Não consigo associar o mais sublime de mim à razão. Ou à falta de razão.
Enlouqueço, logo existo?
É na minha carne que se manifestam os maiores milagres.
Quando mordo, é minha alma que morde.
Quando beijo, é minha alma que beija.
* O chá queimou minha língua.
Há uma outra porta, fechada há muito tempo _você sabe a que me refiro. Não sei como entrar. Ou sair.
Seja como for, há alguns dias tenho pensado nisso: talvez meu corpo saiba. Mas "pensar nisso" também é pensar. E enquanto isso, não tenho coragem... você sabe...
Coragem de tocar o invisível.
sexta-feira, 28 de setembro de 2007
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7 comentários:
alguma coisa no texto, talvez o que ele toca sem mencionar, me lembrou muito 'a vida secreta de veronique'. vc assistiu? é isso, a vida concreta dos atos cotidianos e essa outra vida, que acontece enquanto nos perdemos nos atos cotidianos. é lindo quando as palavras conseguem materializar isso...
menina, não vi!
fiquei curiosa.
aluga! é lindíssimo...
Quero o relato sobre o outono no Japão!
O início desse texto aqui, sobre as chaves, me lembrou o oh, tão hypado "Sexo, Mentiras e Videotape"... Mas melhor!!
Beijo.
Ai que lindo... Um dos meus preferidos...
Mari, agora vou ter de rever Sexo, Mentiras e Videotape para ver se percebo uma semelhança também...
:)
Dé, mulé, obrigada. Fico feliz que tu tenha gostado. Nós e nossas questões metafísicas, heim?
Bj!
e quer mais? estás bem lispectoriana. beijim!
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